A Espiã (Paul Verhoeven, 2006)

a espiã 1

Carice van Houten nude

As imagens acima ilustram bem o que significa um filme de Paul Verhoeven – ou pelo menos parte do seu cinema tão rico e interessante. Trata-se de uma cena na qual a protagonista do filme (Carice van Houten), uma jovem judia que entra em um grupo de resistência após ter tido sua família morta por nazistas, decide colorir os seus pelos pubianos para que eles fiquem loiros como os seus cabelos (que naturalmente são escuros). Podemos dizer que, nas condições em que vivia, suas partes íntimas também são um instrumento de trabalho para realizar a vingança e colaborar para a destruição da invasão nazista na Holanda.

A personagem tem plena consciência dessa realidade, assim como o próprio diretor, que coloca as coisas como elas são: sendo uma jovem mulher bonita, o sexo era uma das formas mais eficazes de penetrar no ambiente do inimigo, uma concessão a ser feita por algo maior, sem moralismos inúteis. No caso, ela já sabia que poderia dormir com um oficial nazista do alto escalão – e encara essa missão como uma verdadeira artista, apostando todas as suas fichas na farsa e no poder da sedução. Portanto, não poderia se apresentar com os cabelos de tonalidades diferentes, justamente porque, naquele momento, era notório que muitas mulheres judias pintavam seus cabelos negros para escaparem do nazismo.

Temos, então, dois elementos marcantes no cinema de Paul Verhoeven: a farsa e o sexo. A farsa com a criação de realidade maquiada, manipulada, fazendo com que o espectador sempre desconfie das suas impressões iniciais: em A Espiã, assim como em outros de seus filmes, os personagens apresentam várias facetas ao longo da trama, chegando mesmo à transformação radical de heróis para vilões e vice-versa. E o sexo, que tanto pode ser um meio como um fim para a tomada de decisões dos personagens, a forma por meio qual muitos revelam quem são verdadeiramente; o sexo que muitas vezes conduz mesmo a narrativa, um elemento praticamente indispensável para compreender a carreira desse grande diretor holandês.

Claro que os dois elementos não se apresentam sozinhos. Estão quase sempre intrincados e justamente na combinação acabam por revelar a identidade dos personagens e da trama em si. Ou melhor: abrem espaço para interpretações, porque os filmes de Paul Verhoeven nunca são óbvios e escancarados, embora muitos pensem dessa forma devido aos (deliberados) exageros de seus filmes – e por conta disso muitas vezes os qualifiquem de “clichês”. Longe disso: estamos falando de um dos cineastas mais corajosos que já passaram pela indústria do cinema, um autor no sentido mais profundo do termo, que não tem medo de trabalhar nos limites do absurdo (quem deseja verossimilhança não deveria ver os seus filmes) e manipular seus personagens, porque, afinal de contas, ele tem plena consciência de que em cada filme só há UM contador de histórias, e por isso mesmo é essencial que o contador imponha, dentro dos limites inerentes à indústria, a sua personalidade. E, neste sentido, até mesmo aqueles que não se identificam com o cinema de Verhoeven devem admitir que poucos cineastas têm tanta personalidade como ele, qualidade cada vez mais escassa no cinema contemporâneo.

O Homem Invisível (James Whale, 1933)

Queria fazer algo formidável para realizar o que os cientistas sonham desde o nascer do mundo. Ganhar riquezas, fama e honra! Gravar meu nome acima dos maiores cientistas de todos os tempos! Eu era miseravelmente pobre. Não tinha nada a lhe oferecer. Eu era só um pobre químico batalhador. Eu voltarei em breve, Flora, para você! O segredo da invisibilidade está aqui, em meus cadernos. Trabalharei no laboratório de Kemp até descobrir como retornar. Existe uma maneira, Flora, e então eu voltarei para você! E oferecerei meu segredo ao mundo com seu TERRÍVEL PODER! As nações do mundo farão lances por isso. Milhares! MILHÕES! A nação que ganhar meu segredo pode varrer o mundo com exércitos invisíveis! Não vê o que isso significa? PODER! Poder para governar, para fazer o mundo RASTEJAR aos meus pés!

Como interpretei A Bruxa, de Robert Eggers

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Inicialmente, devo alertar que não pretendo elencar as qualidades visuais deste que é até o presente momento o “filme do ano”. Sim, considero A Bruxa um filme muito bem dirigido, com belos enquadramentos, atuações convincentes e uma fotografia cinzenta e rústica que consegue transmitir o espectador para uma outra época na história da humanidade. Como o próprio título sugere, apenas pretendo expor a minha singela interpretação sobre a obra – portanto, só recomendo a leitura para aqueles que efetivamente a conhecem.

Pois bem, antes de correr para o cinema e ver A Bruxa, resolvi assistir a um filme que estava há muito tempo na minha lista de prioridades, e que até então eu vinha relutando em conferir: trata-se de Häxan: A Feitiçaria Através dos Tempos, clássico do dinamarquês Benjamin Christensen lançado em 1922 – ou seja, há aproximadamente 100 anos. Essa pérola (uma espécie de semi-documentário) surge como um manifesto a favor da Ciência e do Devido Processo Legal, razão pela qual poderia ser facilmente recomendado para alunos das faculdades de Direito e Medicina (especialmente para as áreas do processo penal e da psiquiatria). Mas, evidentemente, pelo seu conteúdo essencialmente humanista, e pelas suas qualidades artísticas, creio que nenhuma pessoa poderia ficar indiferente diante de uma sessão noturna dessa obra-prima do cinema.

Vale ressaltar que o filme de Christensen surge em um momento da história da humanidade no qual a busca pelo rigoroso conhecimento científico alcançava um patamar sem precedentes. E não se tratava de um desejo pela ciência apenas para interpretar os fenômenos naturais, mas voltado também para as realidades sociais, ordenamentos jurídicos, etc. Portanto, novas descobertas e explicações científicas para todas as coisas que interessavam aos homens abriam espaço para um enorme otimismo ao progresso – pelo menos antes de sofrer forte abalo pela deflagração da Segunda Guerra Mundial e de todos os conflitos que surgiram posteriormente. Em suma, Häxan: A Feitiçaria Através dos Tempos pode ser visto como uma representação do espírito desses novos tempos, justamente para compreender fatos terríveis que aconteceram no passado e vislumbrar novos rumos para o futuro, iluminados pela interpretação racional feita pelo homem.

Logo na sua introdução, o filme expõe a ideia que serve de norte para toda a sua narrativa: “A crença em magias e bruxarias é provavelmente tão antiga quanto os primórdios do homem. Quando o homem primitivo se deparava com algo incompreensível, a explicação era sempre: magias e espíritos demoníacos”. Em sete capítulos, observamos como a ignorância e o preconceito levaram a perseguições de milhões de pessoas que eram chamadas de “bruxas”, quase todas mulheres, que por não se encaixarem em determinado modelo – ou por serem muito feias, pobres e sujas, ou então “estranhas”, muitas em decorrência de surtos psiquiátricos, ou até mesmo bonitas demais, “seduzindo” os homens além do que deveriam – sofreram violações extremas na sua liberdade por meio de processos inquisitórios marcados por torturas e ausência completa do direito de defesa, quase sempre terminando com a execução do “réu” (entre aspas justamente porque o procedimento inquisitório partia de uma certeza, e todos os seus atos eram realizados apenas para confirmá-la, pelo menos formalmente) com o máximo de sofrimento possível.

Então, foi com Häxan: A Feitiçaria Através dos Tempos em mente que analisei A Bruxa, filmes separados por praticamente um século, mas que no fundo têm como essência o mesmo pensamento, qual seja: não existe, nem nunca existiu, algo que possa ser chamado de “bruxaria”, como concretização terrena de forças demoníacas e macabras; apenas falsas percepções da realidade e transtornos psicológicos podem levar as pessoas a acreditarem na existência de algo parecido. Creio que o filme se firma nesse princípio basilar ao construir toda a sua narrativa, embora pudesse ter, naturalmente, tomado decisão diametralmente oposta, como o fez tão bem outro exemplar do terror contemporâneo: Corrente do Mal, dirigido por David Robert Mitchell.

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Portanto, minha interpretação vai no sentido de que todos os fenômenos retratados no filme são consequência de transtornos mentais causados por: fanatismo religioso, ignorância, crença absoluta na existência do demônio, propagação de crendices, opressão moral, isolamento social e, acima de tudo, um permanente medo que acompanha a existência de todos os personagens, do nascimento até a vida adulta. Ou seja, não há nada que não possa ser racionalmente explicado e compreendido – e o filme dá indícios de crer nisso várias vezes, inclusive utilizando de meios levemente cômicos (quando filma, por exemplo, o bode [expiatório] chamado “Black Phillip”, que apesar de viver uma vida ordinária de animal, em determinado momento é tido pelos membros da família transtornada como representação do próprio diabo).

A família retratada no filme é composta por dois adultos, uma adolescente, três crianças e um bebê. São fanáticos protestantes, isolados do convívio social por motivos religiosos, imigrantes que mal conseguem sobreviver de sua plantação, que vêem o mundo ao redor com a marca profunda da ignorância, crendice e medo: à medida que fatos trágicos vão acontecendo, as respostas que alcançam são totalmente deturpadas e irracionais, fruto de algo que poderia ser superficialmente classificada como histeria.

No filme, a única personagem que enxerga o mundo de modo particularmente diferente é Thomasin, a adolescente interpretada pela bela Anya Taylor-Joy: em vários momentos, ela busca a verdade, comprovada em termos concretos, do fato-chave que desencadeou a decadência moral dos demais membros da família: o sumiço do bebê quando estava sob seus cuidados. Acontece que essa personagem, no final das contas, sucumbe a toda opressão e perseguição que os demais membros da família passam a praticar, passando a vê-la como “a bruxa” causadora de todo o infortúnio que os abate. É por isso que, na última cena, quando a vemos levitar com outras mulheres, estamos na verdade vendo o que se passa em sua mente, isto é, ela pensando que está levitando com suas semelhantes. Trata-se de uma ilusão, fruto de enorme desgaste emocional e psicológico que passou em curto período do tempo.

Mas cabe a pergunta: quem são os demais personagens que estão na floresta, tidos como dominados pelo demônio? Aqui também a resposta pode ser encontrada em Häxan: A Feitiçaria Através dos Tempos: embora não exista algo que possa ser chamado de bruxaria, prática portadora de forças sobrenaturais, muitas pessoas acreditavam – e continuam acreditando em pleno século XXI, diga-se – em magia negra, e praticavam rituais “satânicos” com o intuito de alcançar uma força superior para a realização de objetivos escusos, alcançar a cura de doenças desconhecidas ou até mesmo como vingança contra outras pessoas que lhes fizeram mal.

Portanto, creio que o rapto do bebê, posteriormente utilizado em um ritual com um objetivo de curar uma pessoa com deformidades físicas (acontecimento que o filme mostra rapidamente, não deixando de ser uma das cenas mais fortes) simplesmente teve o infortúnio de ter vivido em um ambiente tão escroto, ao lado de fanáticos religiosos e sem a presença de instituições que pudessem garantir um mínimo de segurança para a comunidade.

Essa é, enfim, a minha interpretação sobre A Bruxa: um ótimo filme que demonstra como percepções equivocadas da realidade, decorrentes especialmente da ignorância e da presença constante do MEDO em relação ao desconhecido, podem destruir uma família pacata em um breve período de tempo, da mesma forma como destruíram outras milhões na história da humanidade, e continuam a destruir, uma das possíveis razões pelas quais o filme de Robert Eggers, produzido pela produtora RT Features (do brasileiro Rodrigo Teixeira) se tornou um estranho fenômeno de público e crítica.

O Massacre da Serra Elétrica 2 (Tobe Hooper, 1986)

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“Vou ser franco: acho que esse filme veio da minha frustração com a comédia do primeiro filme não ter sido valorizada ou compreendida. Então eu amplifiquei os aspectos engraçados dele, mas ao mesmo tempo Tom Savini (responsável pelos efeitos especiais de maquiagem) fez tudo tão anatomicamente correto que o filme acabou nem recebendo uma classificação. Eu gosto do filme enquanto uma comédia maluca, bizarra, exageradamente sombria, mas falhei em fazer o que o público esperava do filme, que era assustar muito e dar um pouco mais do que haviam experimentado no primeiro filme. Uma de suas falhas é que infelizmente muito tempo foi gasto com a Família da Serra Elétrica. Você ficava conhecendo a família e sua insanidade bem demais e isso desmistificou os elementos potenciais de horror. Eu gosto desse filme também, mas preciso dizer que certamente não é a continuação essencial. Foi parte de um acordo de negócios, e eu me diverti fazendo, em prejuízo do próprio filme. Às vezes fazemos coisas pelos motivos errados”.

Tobe Hooper, diretor.

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“Eu estava muito feliz com o que havíamos feito visualmente – acho que o filme tem um visual espetacular, especialmente dadas as circunstâncias que tínhamos para trabalhar – e fiquei muito contente com meu trabalho. O filme que eu vi através do visor da câmera e o diálogo que ouvi, esse filme nunca saiu. Há um enorme número de cenas e muitas histórias dos personagens que foram cortadas – especialmente do personagem de Dennis Hopper. Então o roteiro que eu li originalmente, e o roteiro que filmamos, não é o filme que foi montado. Eu fiquei muito decepcionado com a edição que vi porque eles basicamente o transformaram num filme slasher, e isso não era o que o filme seria, a princípio.

O roteiro que vi era uma sátira maravilhosa e mordaz ao materialismo, yuppies, consumismo e ao estilo de vida americano – Kit fez um trabalho brilhante, meio que estendendo o mito do Massacre de todas as maneiras que deveria ter sido, como uma sátira cultural, era bem ao estilo de Jonathan Swift. Todas essas coisas ficaram no chão da sala de edição – essa foi a minha maior decepção, e acho que de Tobe também. Havia toda uma história de fundo sobre o personagem de Dennis Hopper – filmamos cenas incríveis num quarto de hotel onde ele tem muitos conflitos psicológicos sobre coisas que aconteceram em seu passado, ele está deprimido, quase suicida… Quando você corta tudo isso, desvaloriza muito o personagem de Hopper – o guarda do Texas vira uma espécie de figura de desenho que só anda pelo filme com suas serras no coldre, isso eviscera o filme. Seria maravilhoso se o dono do material original deixasse Tobe voltar e editar o filme que ele queria – há realmente uma grande sátira enterrada ali, e nós filmamos a maior parte dela…”

Richard Kooris, diretor de fotografia.

texas chainsaw massacre parte 2

“A Cannon Filmes tratou Tobe muito mal. Eles estavam o tempo todo o questionando, olhando sobre seu ombro, tirando dinheiro, dando dinheiro. O filme que foi escrito e filmado era uma sátira maravilhosa. Daí eles tomaram posse disso e foderam com tudo”.

Caroline Williams, atriz e protagonista.